"No princípio, o mundo não possuía nem noite e nem animais. As pessoas, porém estavam cansadas de tanta luz, pois mal podiam repousar. Sabiam, contudo, que a cobra grande, dona de poderes mágicos, guardava a noite muito bem guardada, cuidadosamente fechada com breu e oculto em algum lugar no fundo do rio.
A cobra grande jamais revelara a ninguém o segredo do coco com exceção de sua filha. E esta, embora não pretendesse transmiti-lo a quem quer que fosse, cedeu ante o sofrimento do marido. Ficou com pena vendo-o dormir tão mal, andar sempre cansado, enquanto ela estava livre disso. E a filha da cobra grande revelou ao marido como era possível obter a noite. De posse do segredo, ele mandou que os seus três escravos procurassem a cobra grande e lhe pedissem a noite em nome da filha, conforme a moça aconselhara.
Ao chegarem ao local onde a cobra grande vivia, ela mergulhou no rio e voltou com o coco onde a noite estava guardada. Pediu-lhes que de nenhum modo abrissem o coco, porque somente a sua filha possuía, além dela, o poder de controlar a noite.
De nada adiantou a advertência da cobra grande. Quando estavam no meio do caminho começaram a perceber certos ruídos estranhos que saíam do coco e que eles não conheciam. Eram vozes dos habitantes da noite, que haviam acordado com o movimento: sapos, grilos e outros bichos. Os três índios não resistiram. Desceram da canoa e acenderam uma pequena fogueira para derreter o breu. De repente a noite nasceu. Tudo ficou tão escuro que os três não sabiam para onde ir. Os bichos que estavam dentro do coco saíram imediatamente, enchendo o ar com suas vozes.
Quando a escuridão atingiu o local onde a moça vivia, ela percebeu logo o que havia acontecido, e contou ao marido. O marido ficou apavorado: 'Como vamos viver nesta escuridão?' a moça disse-lhe que não temesse, pois era senhora de um segredo que podia separar o dia da noite. Tirou, então, um de seus próprios cabelos e, segurando uma ponta em cada mão, começou a cortar rapidamente a escuridão. Não demorou muito, surgiu uma fímbria de luz, que foi aumentando rapidamente. E então o ar se encheu das vozes dos habitantes do dia. Pássaros e insetos transformaram a floresta, deixando surpreso o índio, mais não sua mulher. 'Finalmente teremos o dia e a noite - disse ela - e você poderá também descansar'.
Algumas horas depois, chegaram os três escravos, bastante machucados dos trancos que haviam dado na floresta por causa da escuridão. Procuraram justificar o que tinham feito. A mulher do índio, porém, não concordou: Vocês vão se transformar nuns bichinhos muito curiosos que devem ter visto enquanto caminhavam para cá. Vou transformá-los em macacos. Enquanto não aprenderem a controlar sua curiosidade, terão que colher cocos o dia inteiro. E dêem-se por felizes por poderem descansar durante a noite.'"
(Gonçalves Ribeiro)
EXPLICANDO:
De um lado o dia, de outro a noite.
É com isso que inicio a construção do meu panorama.
Adiante junto o fictício à realidade, o mito à verdade, a idéia ao concreto, enfim, a história à Casa do Baile. Transformo, então, a marquise na Cobra Grande, e a Casa do Baile no coquinho onde a noite se esconde. E é através dos escritos que procuro deixar clara essas idéias. À esquerda o escrito ganha caráter de descrição e esclarecimento, enquanto à direita o escrito dá vida à noite que acaba de escapar.
Deixo, portanto, à vontade de cada um entender, como desejar, a ligação entre a Casa do Baile e o mito indígena.